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domingo, 11 de janeiro de 2009

O Herege


O sacerdote católico espanhol Miguel de Molinos (1628-1697) aparece como sendo um dos mais controvertidos personagens da história da Igreja Católica.
Miguel de Molinos nasceu em Saragoça, Espanha, em berço abastado. Embora o material de pesquisa sobre sua família seja escasso, supõe-se que Molinos tenha sido um dos últimos filhos, senão o mais novo, de uma nobre família dessa região, pois era costume da época que os filhos mais jovens da nobreza fossem confiados à Igreja para serem preparados à vida religiosa.
Em Valência, Molinos foi educado no Colégio Jesuíta de São Paulo.
Possuidor de grandes habilidades naturais à religiosidade, Molinos se dedicou ao serviço de seus companheiros sem qualquer tipo de ganho para si próprio. Sua vida foi inteiramente consagrada a seus semelhantes e marcada por grande piedade e generosidade.
Sendo de natureza fortemente caracterizada por um estilo contemplativo e por possuir um profundo apelo místico, ele logo adquiriu grande reputação em seu país de origem.
Por volta de 1670 (algumas fontes indicam 1663), Molinos transferiu?se para a Itália, onde passaria o resto de sua vida. Em Roma, além de confessor, Molinos exerceu o oficio de diretor espiritual de almas, também alcançando um grande reconhecimento no meio religioso local, sendo, inclusive, bastante admirado no seio de vários círculos eclesiásticos.
Para que tenhamos a justa idéia do valor dado às palavras e aos conselhos desse sacerdote espanhol, bastaria dizer que, entre as muitas celebridades da época que estiveram sob sua tutela espiritual, figuravam o Cardeal Benedetto Odescalchi (1611-1689) e a Rainha Cristina da Suécia (1626-1689). O Cardeal Odescalchi seria feito Papa em 1676, assumindo o Trono de São Pedro como Inocêncio XI.
Todavia, o próprio Papa Inocêncio XI seria, mais tarde, quando da feroz perseguição imposta a Molinos, um dos que o condenaria à prisão, censurando, em uma Bula de 1687, cerca de 70 proposições extraídas das instruções daquele que havia sido seu principal orientador espiritual.
Com o aumento de sua popularidade, a procura pelos conselhos do Padre Molinos se tornou tão grande que ele começou a receber uma certa pressão no sentido de registrar seu pensamento e seus ensinamentos. Deste modo, muitos outros teriam acesso a sua doutrina. Assim, Molinos, por volta de 1673, começou a escrever seu método de consecução espiritual, sem prever o sucesso que ele teria e, muito menos, sem ter a mínima noção dos efeitos que ele provocaria.
Em 1675, Molinos publicou seu ‘Il Guida Spirituale’, no qual ele expunha, de modo claro e direto, a sua doutrina mística.
O Guia Espiritual de Miguel de Molinos, escrito sem a pompa e a especulativa erudição dos teólogos e autores da época, rapidamente ganhou o coração dos seus leitores, atingindo, com igual força, tanto o profano quanto o douto, alcançando fama na Itália e na Espanha. Em seguida, esse livro ganharia novas traduções, aumentando ainda mais a fama de seu autor por toda a Europa.
Assim, uma vastíssima correspondência foi estabelecida entre Molinos e diversos admiradores, tanto com religiosos de renome quanto apenas leigo, interessados em suas idéias, não importando se esses eram ou não influentes personalidades da corte européia.
Muitos sacerdotes católicos de diferente partes da Europa se mostraram abertamente favoráveis ao conteúdo de suas instruções. aprovando por completo seus métodos e seu livro, considerando-os profundamente de acordo com os preceitos católicos e recomendando-os a todos aqueles que desejassem levar uma vida de prece e oração. Entre os sacerdotes católicos que recomendaram esse livro, estavam o Arcebispo de Régio e o Geral da Ordem dos Franciscanos. Outros tantos sacerdotes adotaram o livro e os métodos de Molinos, recomendando-os para todos. É dito que muitos monges trocaram seus rosários pelas instruções e pela prece interior, assim como indicado pelo Guia Espiritual. Também era dito, inclusive, que alguns costumavam utilizar o Guia Espiritual como uma espécie de oráculo, cuja eficiência estaria comprovada quando do auxílio prestado em momentos de dificuldades.
Molinos adquiriu tal reputação, que seu nome e suas idéias começaram a chamar a atenção de certos segmentos do clero, principalmente de alguns Jesuítas e Dominicanos que, temendo um crescimento ainda maior de sua popularidade, resolveram pôr um fim em sua crescente fama, evitando assim a possibilidade de um novo cisma dentro da Igreja.
A oposição feita contra Molinos chamou a atenção da Inquisição que passou a examinar o caso, fazendo uma minuciosa avaliação de seu Guia Espiritual. Independente da forte recriminação tentada por alguns Jesuítas e Dominicanos, o livro de Molinos foi inteiramente aprovado, sem quaisquer ressalvas, nos vários processos que ele sofreu contra a sua validade, tendo sido, inclusive, elogiado pelos quatro Jesuítas que faziam parte do Tribunal da Inquisição como "uma fina jóia de piedade e perfeição". O caso foi encerrado e seus acusares advertidos como escandalosos.
A essa altura, após a aprovação de seu Guia Espiritual, Miguel de Molinos tinha se tornado uma verdadeira celebridade em toda a Europa Cristã. Não tardou e um movimento religioso começou a se formar ao redor de seu misticismo devocional.
A filosofia de Molinos, conforme seu Guia Espiritual, diz que, no sublime propósito de se realizar a perfeição cristã, bem como a suprema comunhão com Deus, o homem deverá se submeter inteiramente aos Seus desígnios, com humildade, anulando por completo a sua vontade individual.
A vida em si deveria ser um contínuo ato de amor e fé. A via espiritual, portanto, era resumida por uma perfeita quietude de desejos, passividade total da alma suplicante diante de Deus e, de tal modo deveria ser o comportamento do buscador, que mesmo o desejo de sucesso nessa demanda teria que ser excluído. Da mesma forma, o desejo de felicidades mundanas, virtudes e qualquer outro tipo de atividade humana, tudo era tido como obstáculo entre a alma e Deus, devendo ser, igualmente, excluídos de seu ser.
Conforme Molinos, aquela alma, que porventura galgasse tal estado de aniquilação, se encontraria em uma condição na qual lhe seria impossível cometer erros ou pecados. E mesmo se por acaso essa abençoada alma parecesse pecadora ante os olhos mundanos, ou até se ela parecesse, de modo exterior, violar qualquer um dos mandamentos de Deus ou algum dos preceitos da Igreja, interiormente, ela estaria em perfeita quietude, onde a verdade de sua santidade apenas revelaria em seus atos a própria vontade de Deus.
Nesse estado de plena iluminação, as orações, penitências e qualquer luta contra as tentações já não mais seriam os instrumentos utilizados por ela, pois ela estava unida ao Criador.
Essas idéias atraíram muitos seguidores por toda a Europa. Logo batizado por Quietismo - uma clara referência ao estado de quietude da alma, segundo o Guia Espiritual-, esse verdadeiro movimento provocado pelas idéias de Miguel de Molinos rapidamente se espalhou pela Itália, Espanha e França, países onde verdadeiras legiões de fieis começavam a praticar o método da oração interior.
O Quietismo também viria atingir e influenciar o Pietismo, um forte movimento dentro da igreja fundada pelo reformador Martinho Lutero (1483-1546), na Alemanha, que incorporaria o pensamento de Molinos, em sua oposição contra o dogmatismo da Igreja oficial. E mesmo na Inglaterra, foi fundado o Quakerismo, uma versão dissidente do protestantismo, com alguma base de Quietismo.
Nos seis anos seguintes à primeira publicação do Guia Espiritual, cerca de vinte edições foram lançadas nos principais idiomas da Europa e também em Latim. Molinos tinha se tornado, involuntariamente, um líder religioso capaz de mobilizar uma enorme quantidade de seguidores e admiradores de seus ensinamentos.
Todo o alvoroço causado pelo Quietismo combinado com a recente lembrança do cisma provocado por Lutero, há pouco mais de um século, novamente viriam chamar a atenção do clero para os significativos "perigos" que o carisma do novo líder religioso pudesse representar. Dessa vez, entretanto, os adversários de Molinos se mostraram bem mais fortes e resolutos.
Novamente, um minucioso processo foi elaborado, no intuito de promover a condenação de Molinos e seus ensinamentos. Desta vez, a trama teria o sucesso desejado. As acusações, embora hoje pudessem parecer apenas tolices, para a Europa do século XVII, soaram como verdadeiras heresias, as mais daninhas possíveis, tendo repercutido conforme esperado por seus delatores. Molinos era acusado de incentivar seus seguidores a abandonar os sacramentos, o confessionário e, por fim, a própria Igreja.
Após muito ter sido dito contra Molinos e seus ensinamentos, e em meio às poucas vozes que se levantaram em sua defesa, a Inquisição oficialmente condenava o Guia Espiritual corno um escrito de natureza herética, perniciosa, errônea, blasfema, escandalosamente ofensiva o moral cristã, etc.
Isso ocorreu em fins de novembro de 1685. E assim, Miguel de Molinos foi arrastado às masmorras pela Inquisição. Sua casa foi invadida, toda sua extensa correspondência apreendida. Todavia, isso, por si só, não seria suficiente para seus algozes, visto a enorme proporção que o movimento Quietista havia alcançado. Muito ainda necessitava ser feito.
Alguns relatos contam que, em fevereiro de 1687, com base em sua correspondência apreendida, dezenas de confidentes de Molinos, muitos dos quais nobres de grande influência em suas cortes - e até mesmo alguns sacerdotes - foram perseguidos pelo Santo Ofício no sentido de abjurar e renegar os seus ensinamentos. Após essa meticulosa investigação, praticamente todas as milhares de cartas trocadas entre Molinos e seus correspondentes foram destruídas e queimadas. Como era costume se dizer, quanto menores os vestígios dessa vil heresia, melhor.
No Decreto papal de 28 de agosto de 1687, o então Papa Inocêncio XI, além de censurar os ensinamentos de Miguel de Molinos, fez constar que todo aquele que fosse encontrado de posse de seu livro, o Guia Espiritual, seria passível de excomunhão. Todos os livros impressos com os ensinamentos de Molinos deveriam ser entregues à Inquisição para que fossem destruídos pelo fogo.
Em setembro do mesmo ano, uma suntuosa cerimônia foi celebrada na Igreja de Santa Maria Sopraminerva, para a pública retratação de Molinos. Diante do uma gigantesca platéia de Cardeais, Bispos, oficiais do Santo Ofício, além de representantes da realeza e da nobreza, era apresentado um Molinos sexagenário, arrasado pelos normais procedimentos utilizados pela Inquisição para a obtenção de confissões. Após a sua retratação, a sentença foi pronunciada: Molinos estava condenado a passar o resto de sua vida na prisão.
A cidade de Roma, então, foi informada, em caráter oficial, que Molinos tinha se retratado, renegando toda sua doutrina, culpado de heresia, além de também ter confessado vários outros pecados
Com Molinos encarcerado, torturado e por fim tendo confessado ser de culpado de heresia, e além perseguição imposta a seus confidentes, ainda um outro passo seria dado pela Inquisição, visando a total erradicação de seus seguidores, os Quietistas.
Porém, como atingir um movimento cujas bases foi estavam centradas tão somente na oração interior?
Para tal, usou-se uma tática bem comum, e, muito utilizada, já naquela época: a da desinformação e da que calúnia.
Assim, a eficiente máquina da deslealdade humana foi ativada. Uma série de sinistros rumores sobre Molinos, sua conduta moral e seus propósitos ganhou as ruas de Roma, sendo, rapidamente, por toda a Europa. Todos esses rumores eram, obviamente, falsos, alguns porém beiravam ao ridículo.
Seus seguidores foram denominados de Alumbrados, nome de uma obscura seita ativa na Espanha que considerava apenas o êxtase como a verdadeira oração. Esse grupo também ensinava que qualquer sacramento era desnecessário para aqueles que estivessem íntimos de Deus. É válido lembrar que o pensamento e a moral do século XVII eram extremamente suscetíveis a uma acusação deste quilate, onde o mistério e o medo a envolviam eram mais que suficientes para impressionar a sensível, manipulável e inculta a massa de fiéis.
Uma outra acusação que ganharia grande repercussão dizia que Molinos, além de nunca ter sido batizado, era, na verdade, um Judeu. Esse "terrível" status, na época, era entendido como um tipo de crime da pior espécie, ou algo semelhante.
Finalmente, seus ensinamentos foram considerados daninhos não só para a Igreja propriamente dita, mas à sociedade como um todo, afinal, a base de seus métodos estava estritamente associada com a subversão da conduta moral e contra os bons costumes.
Em sua cela, no convento Dominicano de San Pietromontorio, Molinos como parte de sua sentença, foi obrigado a recitar o Credo diariamente, duas vezes por dia recitar o Rosário, se confessar pelo menos quatro vezes por ano e comungar regularmente.
A história nos conta que Miguel de Molinos, ao ser conduzido para sua cela, estava resignado e conformado com seu destino. Enquanto um Padre Dominicano se preparava para encerrá-lo em seu perpétuo claustro, Molinos se dirigiu a ele e disse: "Adeus Padre. Nós nos encontraremos novamente no Dia do Juizo Final. Então será sabido se a verdade estava ao meu lado ou ao seu". E essas foram as últimas palavras que o mundo ouvia de Molinos.
Ali sua voz era silenciada. Miguel de Molinos assim se transformaria em mais um cristão que, como tantos outros, foram perseguidos e condenados pela Mãe Igreja. Em sua cela, Molinos estava fadado ao esquecimento. E mesmo sabendo que sua vida e sua doutrina estavam sendo destruídas, ali ele permaneceu em silêncio, resignado e quieto, aceitando seu destino, conforme seus próprios ensinamentos e em comunhão com a vontade de Deus.
A morte de Miguel de Molinos na prisão, em dezembro de 1697, e a constante perseguição imposta àqueles que ainda seguiam os seus ensinamentos acabariam por decretar o fim da curta história dos Quietistas.
Pela vontade daqueles que o acusaram, perseguiram e, por fim, o condenaram à prisão perpétua, pondo um fim em suas atividades, a memória de Molinos seria preservada apenas pela pequena inscrição de sua lápide: "Aqui jaz o corpo do Doutor Miguel de Molinos, o grande herético".
Todavia, como já mencionado antes, algumas vezes o esforço para apagar a vida de um grande homem apenas vem corroborar o nascimento do mito. Deste modo, a memória e os ensinamentos de Molinos conseguiram escapar da loucura e da insanidade, da Inquisição.
Desde a perseguição imposta a Miguel de Molinos, bem como a seus escritos, várias outras edições de II Guida Spirituale têm sido impressas, principalmente na Europa. Isso fez com que, ao longo dos anos, algumas versões, de conteúdo levemente diferente do original, fossem impressas e distribuídas, todas, contudo, muito próximas daquela lançada em 1675.
Examinando esse livro, não será difícil uma questão invadir a mente: como alguém pôde ter sido condenado por ele? Se sua linguagem é simples, direta e se o próprio livro aparece apenas como um guia que promete a libertação da alma e sua união com a divindade, não seriam esses os objetivos maiores de uma religião? Acreditamos que a melhor solução para essa pergunta seja de cunho pessoal, cabendo ao indivíduo descobrir a sua própria resposta.
Enfim, esperamos que o Guia Espiritual, de Miguel de Molinos, possa fornecer os subsídios necessários à realização espiritual e interior de cada um, nesse seguro método de comunhão com a divindade que habita o âmago de todos nós, seres humanos em oração.